O Último
Godot
Matéi Visniec
Rua em declive, com pouquíssimo movimento, ao crepúsculo.
Godot, homem magricela mas decentemente vestido, está sentado à beira da
calçada, os pés na sarjeta. Fuma, com ar triste, sem pensar. Próxima a ele, uma
lata de lixo emborcada.
De algum lugar, invisível para a platéia, vem o som de uma
porta se abrindo, ouve-se uma balbúrdia surda e um segundo homem magricela (mas
decentemente vestido) é jogado sobre a calçada. Como veremos adiante , este
segundo homem é Samuel Beckett em pessoa. O personagem quase despenca sobre
Godot.
Beckett -
desculpe.
Godot - não
foi nada.
Beckett -
(espanando a roupa): Eu não queria machucar você.
Godot - Eh,
tudo bem!
Beckett - (ajeitando o chapéu): Canalhas. Só canalhas!
Godot - É a
regra. (olhando-o com mais atenção) Ei, olha aí, a manga descosturou.
Beckett -
(levantando o braço esquerdo e tocando a axila): Eu já tinha percebido.
Godot - Eles
bateram em você¿
Beckett - Não.
Na verdade eles me sujaram.
Godot -
(oferecendo-lhe uma bagana): Quer uma tragada¿
Beckett - Obrigado.
Godot -
Sente-se. Por que não se senta¿ (Beckett
senta-se na calçada, os pés na sarjeta) É só impressão ou eles jogaram você
para fora¿ Hein, não jogaram você para fora¿
Beckett -
(ligeiramente irritado): E você por acaso viu eles me jogarem para fora¿
Godot -
(triste): Na verdade, eles me jogaram pra fora também.
Beckett - De
onde¿
Godot - Do
teatro.
Beckett -
Quando¿
Godot - Há
pouco.
Beckett - Você
tinha um ingresso¿
Godot - Tinha.
Beckett - E
então¿
Godot - Não
quiseram representar para um único expectador.
Beckett - Devia
ter insistido. Se você tinha um ingresso, devia ter brigado. Eles não tinham o
direito de não representar! É o que eu penso: tinham que representar. Mesmo que
só para você. Devia ter brigado.
Godot - Brigar
com quem¿ Com essa gente...
Beckett - Não
devia ter permitido. Você não devia ter permitido. Eles são obrigados a
representar. Mesmo se houver só cinco pessoas na plateia. Não interessa. São
atores. É o ofício deles.
Godot - Tavez
eles também estejam de saco cheio. Anteontem tinha exatamente cinco pessoas,
como você disse. E eles representaram. Percebe¿ Talvez eles também estejam
cansados... Todo mundo está cansado. (Pausa. Retoma a bagana e puxa uma
baforada). Ontem tinha só dois.
Beckett - Como
sabe que tinha só dois¿
Godot - Era eu
um dos dois. (puxa uma baforada). Vou mostrar uma coisa...
Sabe tirar a bagana com dois dedos¿
Veja...
Pegue assim...
Com esse dedo aqui...
Dê-lhe um piparote, e então ela sai voando...
(joga a bgana na outra calçada).
Viu¿ Consegue fazer isso¿
Godot - Fazer
o quê¿
Beckett - Vir ontem e hoje!
Godot - Ah, mas eu venho
sempre. Venho todas as noites.
Beckett - Bem que eu achei que já
tinha visto a sua cara.
Godot - Eu também já tinha
visto a sua. Não era você o sujeito no fundo da plateia¿ Quer dizer, ontem à
noite era você o segundo¿
Beckett - Sim, era eu. Certo, era
eu mesmo.
Godot - Eu tinha sacado que era
você . Quando vi você , saquei. E você fazia o que ali¿
Beckett - Fui eu que escrevi
Godot - O quê¿
Beckett - Essa peça. Fui eu que
escrevi.
Godot - Mentira! Foi você que
escreveu¿
Beckett - Eu
Godot - Quer dizer que você é o
autor¿
Beckett - Sou. Sou eu.
Godot - Estupendo! Então você
existe.
Beckett - Existo. É claro que eu
existo. Quem lhe botou na cabeça que eu não existia¿
Godot - Na verdade, eu já tinha
entendido há muito tempo que você existia. Foi há poucos anos que me perguntei
se você existia mesmo. Dizia pra mim mesmo: ele existe ou não existe¿ Em alguns dias eu achava que você não poderia
existir. Está entendendo¿ Há dias assim. Há dias e dias, percebe¿ Todo tipo de
dias . Mas você não pode sacar. Com essa cachola vazia.
Beckett - Vou te dar uma...
Godot - Ah, quer me bater¿
Bate! Vai, bate! (pausa. encarando-o furioso) Se você quer saber , já me bateu demais! Tem é que
parar de me bater. Já me bateu demais até aqui.
Beckett - Não foi culpa minha.
Machuquei você porque me empurraram.
Godot - Ah! Não saca coisa
alguma. (fixando-o) Não estou falando de hoje. Falo em geral. Há anos você me
faz de besta.
Beckett - Eu faço você de besta¿
Godot - É, você! Todos os dias,
cada segundo, há anos. Você me esfolou vivo, me esmagou, me destruiu. Fez de
mim um fantasma, um fantoche, humilhou-me. Isso então é um personagem¿ (põem-se
de pé, ameaçador) Infeliz! Agora vai pagar por tudo, tudo, tudo!
(acachapante)
Eu sou Godot!
Beckett - O que foi que disse¿
Godot - Eu sou Godot! Isso lhe
diz alguma coisa¿ Está entendendo bem¿ Chegou a sua hora. Pelo menos tem que
entender, sentir que chegou a sua hora!
Beckett - Está louco. Não foi à
toa que jogaram você pra fora.
Godot - Eu, louco¿ Eu¿ Você é o
louco! Não me chame de louco. Não sou louco. Quem escreve é que é o louco. Isso
lá é jeito de escrever¿ Por que não olha um pouco em volta, pra ver como se
escreve¿ Onde já se viu um personagem que não aparece¿
Onde¿ (pausa. ele espera uma resposta) Judas!
(senta-se novamente)
Beckett - Não admito que me chame de Judas! Não
tem direito de me pedir satisfações.
Godot - Eu¿ Não tenho o direito
de pedir satisfações¿ Ei, espera um pouco. Sou o único que tem direito de
exigir satisfações. Quem você acha que é¿ Veja só Shakespeare! Todos os
personagens aparecem! Até o fantasma! Tudo o que está escrito no papel entra em
cena. E você¿ Pensa que foi fácil todo esse tempo pra mim¿ No fundo quem sou
eu¿ Como é possível que brinque assim comigo¿
(pouco a pouco começa a choramingar).
Um minuto só me bastaria... Até um segundo... Eu
também poderia dizer uma fala... Não importa a fala... Por exemplo, eu poderia
dizer Não... Eu poderia aparecer bem no final, ir até a boca de cena e dizer
Não... O que poderia acontecer se eu dissesse Não¿ Digo que não aconteceria
nada... Não é que não aconteceria nada¿
Beckett - Não.
Godot - Estou de saco cheio,
pura e simplesmente de saco cheio! Como é possível boiar assim infinitamente¿
Ser e não ser, ao mesmo tempo¿ É isso o que quero perguntar a você, entende¿
Como é possível ser e não ser¿
Beckett - Não sei
Godot - Mas tem que saber. Como
pode não saber¿ Alguém tem que saber. Quem pode saber, se você não sabe¿
Beckett - Eu não sei. Me veio
assim, espontaneamente.
Godot - Talvez tenha sido um
momento de destempero. um mau dia. Pode acontecer com todo mundo, né¿ Uma
fatalidade... Mas as coisas podem se arranjar... Pode ser feita alguma coisa.
Como eu já disse, não preciso mais do que um
minuto, mais do que uma única palavra, para ser eu mesmo.
(tira um maço de folhas de papel do paletó).
Olha... Aqui... Não tenho absolutamente nenhuma
pretensão... Me ajeita em algum lugar... Não importa onde... Abra um
parêntese... Faça alguma coisa...
Beckett - (folheando as páginas,
entediado, depois lança fora:) Inútil. O teatro está fechado.
Godot - (recolhe as folhas na
rua): Não é possível... não é possível...
Não pode acabar assim...
Beckett - A peça não vai mais ser
encenada.
Godot - (interrompendo o gesto
no ar): Como assim não vai mais ser encenada¿
Beckett - Não viu como eles me
jogaram para fora¿ Não vai mais ser encenada. Nada mais vai ser encenado, em
lugar nenhum. Nada.
Godot - Mas é terrível...
terrível...
Beckett - Mas é isso. (pausa) Tem
um cigarro¿
Godot - Ainda pode achar
algumas baganas na lixeira.
Beckett - Merda! Não vou fumar
lixo de jeito nenhum.
Godot - Por quê¿ É a lixeira do
teatro... (levanta e desvira a lata de lixo... Aí está, escolha...
Beckett - Não posso. Tenho nojo.
Godot - (remexendo com o pé por
entre os objetos espalhados): No fundo, talvez você tenha razão.
(preocupado com os restos do teatro)
A lona já não se aguenta em pé... Não é mais como
era... Basta olhar para esta lixeira para ver que o teatro está fodido...
Beckett - O que é isso aí¿
Godot - Uma máscara... Não é
mais usada... (acende uma bagana) Ah. que tempos... Que mundo... Hoje em dia,
quem é que ainda sabe usar uma máscara!
(puxa uma baforada, senta-se ao lado de Samuel
Beckett e estende a ele a bagana. Cochichando) Tenho a impressão de que alguém
está escutando.
Beckett - (pega a bagana, dá uma
tragada, olha em torno de si): Onde¿
Godot - (cochichando): Lá atrás
de nós. Um sujeito. Parou ali faz uns cinco minutos e está nos escutando.
Beckett - (dando uma tragada,
passa-lhe a bagana), Deixa estar!
Godot - Se quiser eu mando ele
passear.
Beckett - Não vale a pena.
Godot - Arrebento a cara dele.
E é já! Quer¿
Beckett - Fica tranquilo.
Godot - Quero fazer algumas
coisas para você. Não poss vê-lo assim acabado. Quero fazer alguma coisa por
você. Dou então só um safanão nele, para aliviar a tensão.
Beckett - Por que bater nele¿ É
um homem. Não vê como as ruas estão desertas¿ Até me espanto em ver alguém
andando por aí.
Godot - Eu também já tinha
notado que a coisa não vai bem.
Beckett - Quando vinha para cá
atravessei um parque. Quantas pessoas você acha que passavam nele¿
Godot - Quantas¿
Beckett - Três.
Godot - (triste, fumando): Eu
ia dizer três, mas não disse.
Beckett - Há duas horas fui beber
uma cerveja na calçada. Quantas pessoas você acha que estavam lá¿
Gotot - Quantas¿
Beckett - Três.
Godot - Que se fodam. Eu ia
dizer três e não sei por que não disse.
Beckett - Tente entrar num
ônibus. Você vira louco varrido. Vim prá cá de ônibus. Quantas pessoas você
acha que estavam no ônibus¿
Godot - (triunfante): Três!
Beckett - Só eu e o motorista!
Godot - Está muito claro. Tudo
está degringolando.
Beckett - O motorista era surdo.
Quando perguntei a ele onde deveria descer, ele encolheu os ombros.
Godot - Animais. Não é mais um
mundo em que se possa sair de casa. A melhor coisa é ficar trancado e pensar.
Beckett - Olhe o outro lado da
rua. Todas as janelas estão fechadas, todas as cortinas cerradas.
Godot - Vem chegando alguém.
Beckett - Quem¿
Godot - (sussurrando): Um
sujeito. Parou atrás de nós e está nos escutando.
Beckett - Foda-se.
Godot - Que bom ver você
revigorado. Se quiser, vou lá e...
Beckett - Não, não... Em vez
disso acende uma bagana.
Godot - A coisa de que mais
tenho medo... Mas mais mede de verdade... (procurando nos bolsos) Sabe... É que
amanhã eu não saiba mais pra onde ir.
Beckett - Como assim¿
Godot - (encontrando uma bagana
um pouco maior): Quer dizer, o teatro. Aposto que vão fechá-lo também.
Beckett - Vão transformá-lo em um
entreposto de barris de chucrute.
Godot - Já tem cheiro de repolho
fermentado.
Beckett - Não é de repolho
fermentando. É de esgoto. (inclina-se e encosta o ouvido na calçada): Alguma
coisa está movendo aqui em baixo. Está ouvindo alguma coisa se mover aqui
embaixo¿
Godot - A mim parece imóvel.
(escuta) Você acha que está se movendo¿
Beckett - Está sim, mas muito
lentamente.
Godot - As vezes, quando me
levanto de manhã, tenho a impressão de que alguma coisa sai da minha cabeça e
se espatifa no chão. Você acha que é possível¿
Beckett - Alguns anos atrás eu
quase esmaguei uma pessoas com o meu carro. Mal consegui frear, depois senti a
mesma coisa.
Godot - O que será isso¿
Beckett - Não sei. Talvez não seja nada.
Godot - Meu velho, vou lhe
dizer uma coisa. Acho você cada vez mais simpático.
Beckett - Eu também quero dizer
uma coisa. Lamento tudo que aconteceu. Se quiser, você pode entrar no final,
como queria.
Godot - E pra quê¿ O teatro
está morto.
Beckett - Morto ou não, quero que
entre no final. Dê-me os papéis.
Godot - Bobagem! O importante é
estar vivo.
Beckett - Não, não... Quero
acrescentar alguma coisa... (procura por entre as folhas). Onde está o final¿
Godot - Meu velho, esses não
merecem um final. Sugiro outra coisa. Tenho uma garrafa.
(durante todo esse tempo, passantes aproximaram-se
e pararam para escutá-los. Até o final, eles formarão um semicírculo em torno
deles)
Beckett - Ela também vem da
lixeira¿
Godot - Isso não importa. O
importante é que está aqui. É minha. (tira a garrafa do paletó) A que vamos
beber¿
Beckett - Apenas beber, nada
mais. Beber pura e simplesmente.
Godot - Não, é lastimável beber
pura e simplesmente. Neste mundo é lastimável apenas beber. (Levanta a
garrafa). Ao teatro! Que acaba de morrer.
Beckett - Para o diabo o teatro.
(pega a garrafa e bebe). O quanto eu o amei.
Godot - Porcaria... Crápulas...
Matar a arte... (bebe com entusiasmo, aturdido): Posso abraçá-lo¿
Beckett - (comovido): Agora,
nesses últimos anos, peguei o costume de me enfiar na platéia, ficar lá no
fundo, no escuro... Ficava espiando... Oh, eu amei uma quimera... (abraçam-se).
Godot - (sobre o ombro de
Samuel Becket): O que se pode fazer agora¿ Está tudo afundando... A calçada...
Vamos todos morrer como ratos...
Beckett - Para com isso, ninguém
vai morrer.
Godot - (choramingando): Eu não
poderia viver sem o teatro... Não duraria muito... Toda noite, eu estava na
platéia, estava entre as pessoas, vivia... Sofria como um animal, mais vivia...
Vivia em tudo, em cada palavra... Como eles podem fechar tudo¿ Como podem jogar
as pessoas para fora¿ O que será de mim agora¿
Beckett - (olhando embaraçado em
volta de si, cochichando): Cale a boca,
não vê que está todo mundo rindo¿
Godot - O quê¿ O quê¿
Beckett - (cochichando): Não vê¿
Que se fodam. Está vendo quantos eles são¿
Godot - (cochichando): De onde
saíram¿ O que é que eles querem¿
Beckett - Não tenho a mínima
idéia. O que importa é que eles estão aí.
Godot - Se quiser eu vou lá e...
Beckett - Não... Não... Vamos
continuar falando. Vamos falar mais. Vamos continuar assim.
Godot - (espantado, agitado):
Não sei de onde eles saíram. A rua estava deserta. Estava deserta há pouco.
Como podem se reunir em tamanho número numa rua deserta¿
Beckett - Podem. Tudo é possível.
Há dias em que tudo é possível.
Godot - Veja. Começaram a
sentar. Acho melhor cair o fora.
Beckett - Por quê cair o fora¿
Vamos continuar falando
Godot - Então será tarde
demais. Eles vão nos sufocar.
Beckett - Que é isso, que é isso... Vamos continuar
Godot - Falar de quê¿ Falar por
quê¿
Beckett - Falar. O mais
importante é falar. Vamos falar de tudo.
Godot - (olha em torno,
assustado, a multidão sentada na rua): Meu Deus, o que é que eu vou dizer¿
Beckett - Pergunte-me se eles me
bateram... Enquanto isso eu tiro o sapato e olho para ele. Depois, você me pergunta o que estou fazendo (tira o
sapato)
Godot - (com voz decidida): Que
é que você está fazendo¿
Beckett - Estou tirando o sapato.
Isso nunca aconteceu a você¿
FIM
Fulinaíma MultiPojetos
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