de Ruy Jobim Neto
Personagens:
AMAURI, homem maduro
MALU, jovem garota
Época: atual
Local: uma metrópole
A ação se passa no
atelier do artista, enquanto ele a desenha.
Um atelier sem limites
entre o hoje e o vento. O som é de Chet Baker.
....
MALU
A malha fina entre o teu
desejo e a minha pele te remete aos teus sonhos.
AMAURI
Eu não desenho sonhos.
MALU
Até ontem. Hoje você é o
escritor das formas. Me seduz e me cobre de vontade.
AMAURI
Você seduz.
MALU
Eu me atenho, apenas.
AMAURI
Você fez amor comigo.
MALU
Ainda não. Eu pulei para
a carne de tua realidade, só isso. Eu permiti duas ou três iniciativas. Duas ou
três. Você bem que soube aproveitar.
AMAURI
E agora te desenho.
MALU
E agora me desenha. Mas
eu não paro, você sabe.
AMAURI
Isso. Anda.
MALU
Teu universo criativo.
AMAURI
Anda por entre as
florestas.
MALU
Eu caminho por entre as
velas acesas.
AMAURI
No meio da videira.
MALU
A videira.
AMAURI
Te posso sentir assim,
meio cabernet.
MALU
Eu desando para você.
Faço pose e admito que você me esquadrinhe. Eu me sinto assim, uma Mona Lisa.
AMAURI
Gioconda.
MALU
Abaporu.
AMAURI
Nascimento de Vênus.
MALU
Sou Rosa Luxemburgo e sou
Pagu.
AMAURI
Pode se vestir agora. O
vento não lhe cai bem.
MALU
Sou Olga e sou Anne
Frank.
AMAURI
(joga o roupão para ela)
Amsterdam é triste.
MALU
É nada.
AMAURI
Chet Baker morreu lá.
Pulou.
MALU
Ao lado do sax. Ninguém
morre triste em Amsterdam ao lado de um sax.
AMAURI
Veste.
MALU
Eu sigo até você. Olho,
me insinuo, te deixo, te engano.
AMAURI
Eu vou te levar a
Amsterdam.
MALU
Não. Se você me levar até
lá, vai me mostrar onde ele morreu. Não quero.
AMAURI
Eu te quero.
MALU
Eu sei. Por isso te
provoco. Por isso me provoco. (veste-se) Minha nudez nada mais é do que a tua
imaginação jogando a toalha.
AMAURI
Uma luta?
MALU
Não. É um decolar de
emoções. Eu sou mulher. Conheço isso desde que me dou por gente.
AMAURI
Me atiça.
MALU
Isso é uma ordem ou uma
afirmação?
AMAURI
Você é Cleópatra.
MALU
Então me morde e me mata.
AMAURI
Já pensou em morrer?
MALU
O tempo todo. Quando não
penso nisso, é por que eu tô te seduzindo.
AMAURI
Você é o meu sax?
MALU
Não.
AMAURI
O que é você, então?
MALU
Partitura. A música que
eu apresento tem pizzicatos e codas.
AMAURI
Um acorde?
MALU
Não acorde. Deixa que eu
mesma te absorva.
AMAURI
Quer um vinho?
MALU
Quero você, antes de
tudo. Você perturba a sua própria paz. Você me traz aqui, me atrai, me
desperta, me incomoda. Faz tudo o que eu quero. Faz mais do que isso. Me
atrapalha.
AMAURI
Meia taça?
MALU
O teu brinquedo não
cansa. Quero você nu.
AMAURI
(olha ela pelo vidro da
taça, segue como se a filmasse com a taça de vinho) O aroma do cabernet atiça
todas as sombras.
MALU
A cidade lá fora não sabe
da gente. Você não sabe da gente. Tudo o que você tem sou eu e essa taça. Agora
me engole, me degusta, me cheira. Me bebe.
AMAURI
Malu.
MALU
Sem nomes. Lá fora sou
Maria Lúcia. Aqui não sou nada além de um vestígio de teu lápis. Fica nu pra
mim.
AMAURI
Sou Amauri, mas você me
quer outro.
MALU
Nada de nomes. Não sei
quem somos. (para a platéia, com foco sobre ela) Dia desses, ele me quis confidente.
Fui. Noutro dia, ele me despiu eu estando louca. Uma louca, ele disse. Daquelas
que se arrebentam nas pedras. Lembrei logo de Camille. Era a última das loucas.
Todas as mãos e os pés são de Camille. Ele pretendeu que nós dois nos amássemos
no brilho da lua. Eu falei que não tinha lua, que a lua era uma abstração. Eu
me apaixonei, mas não podia demonstrar. O homem maduro te deixa impune, você dá
a ele a licença poética para ele te ensinar o que não é ensinável. Eu nem sei
se essa palavra existe.
AMAURI
(foco nele) Em Amsterdam
não existe.
MALU
(ainda, para a platéia)
Eu queria ser Anne Frank e escrever o diário. (apaga o foco dele) Quem sabe eu
escreveria até dentro da câmara de gás. Eu sou bem louca para essas coisas.
Faço um solilóquio, mas são meus pensamentos que me deixam sem fôlego. Uma
guria, disse ele. Uma jovem que cai ao chão toda vez que o tiro corre solto. A
bala perdida é o amor que te devora. Ela te penetra as carnes, os músculos, te
deixa vulnerável.
AMAURI
(foco nele) Uma guria.
MALU
O homem maduro nada mais
é do que a lua. Tem jeito de noite, é abstração. (apaga o foco dele) Faço o
solilóquio e percebo que tudo em minha volta se resolve em cantos e velas que
quase acendem. Quando a bala te alcança, ela não mede esforços. Ela te agride,
te maltrata, te lambuza de medo e noites lindas. Aí vem o dia e te conta
histórias. E então você não sabe mais em quem acreditar.
(luz geral retorna)
AMAURI
Até ontem eu tinha um
merlot. Comprei uns queijos, mas não tinha a combinação certa.
MALU
Você está me contando
isso por quê?
AMAURI
Quero justificar a falta
sua ontem à noite, por isso eu tinha a combinação errada.
MALU
E hoje é a certa?
(encerra a música)
AMAURI
O que eu aprendi com
você?
MALU
Que não é tão chato assim
morrer em Amsterdam com um saxofone ao lado.
AMAURI
Eu disse para mim que
fazendo amor contigo hoje seria sufocante.
MALU
Gostei.
AMAURI
Que eu te mataria aos
poucos em meus traços, e não deixaria pedra sobre pedra daquilo que eu sei de
ti.
MALU
Agora fica nu para mim.
AMAURI
Eu sonhei te beijando,
você colorida de todos os matizes, você impregnada de grafite e borracha, você
consumida pela ânsia de me deitar, de beijar meu peito, minha pele, de me
colocar miserável.
MALU
Você me mataria?
AMAURI
Penso que não.
MALU
E admite que eu suma de
sua vida? Que eu brinque de você e pose para teus olhos que não me vêem mais?
Que eu partilhe sua perda de gênero homem, quando ganha o gênero hominídeo?
AMAURI
(foco apenas nele, ele
para a platéia) Eu não sou Rodin nem sou Botero. Deixo as tintas aguadas para
Monet. Meu pontilhismo me alcança à noite, sou dor e é só. A mulher marca
presença ao som de Chet Baker só porque Chet Baker pede isso, a música meio que
embala um pedido.
MALU
(foco nela) Ei, garçom.
Chet Baker. (começa outra faixa de Chet Baker)
AMAURI
O amor que você faz com a
garota dos teus delírios é quem leva teu lápis. À noite, na sua cama vazia, a
música perpassa as idéias, ela chama o corpo para você, ela chama o corpo até
você. (ela se olha num espelhinho) A imaginação brinca com o teu sexo, ela te
consome como a segunda parte da música.
MALU
(foco nela) Fica nu pra
mim. (apaga o foco dela)
AMAURI
Sem nomes, ela disse. O
corpo dela não tem nome, não tem RG. O endereço se perdeu no bolso, o celular
não tinha crédito e o e-mail não foi anotado. Só uma garota, no travesseiro.
Ela se vira para ser abraçada. Uma guria, eu disse. E aquela pele perseguida em
volteios e partes que não se completam é tudo ao mesmo tempo. Para o homem, as curvas
são o sinal de bom corpo, de boa prole. Para a guria, a menina, a jovem, nada
mais é do que artifício. E ela é a guia para todas as estradas possíveis.
(luz geral)
MALU
Quando vamos fazer amor
que nem ontem?
AMAURI
Dança comigo?
MALU
Você e Chet Baker. Por
que não muda de faixa?
AMAURI
Meu gosto te inferniza?
MALU
Contanto que você não me
leve a Amsterdam.
AMAURI
Vou te levar ao lugar
crucial.
MALU
(beija-o) Não.
AMAURI
Malu.
MALU
Sem nomes.
AMAURI
Quer me ouvir dizer “eu
te amo”?
MALU
Quero, mas só quando você
estiver dentro de mim, preso e miserável.
AMAURI
Quero teu e-mail.
MALU
Nunca.
AMAURI
Me passa o teu celular.
MALU
Enlouqueceu.
AMAURI
Quero te levar até tua
casa.
MALU
Vou fugir daqui.
AMAURI
Vou rir de tuas fotos,
vou conhecer teus bichos de pelúcia, falar contigo no MSN.
MALU
Escuta aqui, eu sou teu
brilho de vida, eu sou teu sopro de vontade, tua coisa que pulsa. Não é pra me
moldar, não. Não é assim que eu funciono.
AMAURI
Vou morrer de tesão, pela
manhã.
MALU
Eu sei. Você me come com
os olhos e me fatia em porções miúdas. Morde meus ombros, meu peito te acaricia
e teus dedos são automóveis.
AMAURI
Você é uma cidade.
MALU
Nem tanto. Sou apenas uma
estrada vicinal que você percorre à noite, com farol de milha.
AMAURI
Quer mais vinho?
MALU
Quero você. E não penso
em competir com ninguém.
AMAURI
Sem nomes, você disse.
MALU
Nossas regras são
simples: há uma cidade lá fora, uma metrópole em que centenas, se não for
milhares, milhares de casais estão na coesão de seus desejos neste exato
instante.
AMAURI
Você fala bonito.
MALU
Aprendi contigo, mas não
admito isso na tua frente que é pra não te deixar pior do que eu te encontrei.
AMAURI
Fala mais.
MALU
Teu universo criativo me
atordoa. Tuas velas e caminhos aquáticos, tuas florestas me engalfinham. Eu nem
sei bem o que somos, o que pensamos das coisas direito. Eu chego aqui, mostro o
meu seio, você o acaricia e o beija assim que abre a porta. Eu entro, você me
despe e me desperta em beijos.
AMAURI
Continua.
MALU
No instante seguinte,
meus pelos pubianos são tua realidade, apenas. Nada além deles. Tudo o que eu
digo de novidade do mundo externo não conta.
AMAURI
Sem nomes, você disse.
MALU
Eu nua, você munido de
tesão. O chuveiro despeja água sobre tudo o que somos, e você me acaricia, me
enlaça, me penetra brincando. Brincando de mim.
AMAURI
Vou te levar pra Búzios.
MALU
Melhor que Amsterdam,
nesse momento. E se os holandeses me prenderem por meia hora numa saleta de
aeroporto, o que eu faço? Digo que sou tua e eles me expulsam diretamente para
os teus braços? Digo que sou tua e me jogo de costas na cama para você me
encontrar inteira?
AMAURI
Se eu tivesse um mapa da
tua emoção, um guia das ruas dos teus sentimentos...
MALU
Um mapa não adianta. Você
não me desvenda e eu te devoro.
AMAURI
Diga que é minha e eles
te expulsam.
MALU
Digo que sou tua e eles
carimbam assim no meu passaporte: “persona mais do que non grata”.
AMAURI
Eu te conto as histórias
que me contavam quando eu quis viajar.
MALU
Eu sei. E você me leva
até Amsterdam nos teus sonhos.
(encerra Chet Baker)
AMAURI
Eu fico nu pra você.
MALU
Não duvido. Eu te
completo.
AMAURI
Vou te levar a Belfast.
Você vai adorar Positano. Vamos dormir em Zurich e brindar nossas taças no
Kremlin.
MALU
Me desenha.
AMAURI
Mais um?
MALU
Eu deito na sua cama,
primeiro. E daí você relaxa enquanto eu estiver fazendo as minhas coisas. A
lápis.
AMAURI
Sem nomes, você disse.
MALU
Sem nomes, eu disse. E
diga que me ama apenas quando você estiver dentro de mim.
AMAURI
Direi.
MALU
Me surpreenda.
AMAURI
Irei te amar como nunca.
(começa a se deitar)
MALU
Me fale coisas que eu
nunca ouvi. (começa a se deitar também)
AMAURI
Eu já te chamei de
Camille Claudel?
MALU
Não farei os pés e as
mãos para você. Deixarei a teu critério.
(vão falando
simultaneamente)
AMAURI
Olga Benário.
MALU
Billie Holiday.
AMAURI
Tarsila.
MALU
Erêndira.
AMAURI
Rosa Luxemburgo.
MALU
Sarah Kane.
AMAURI
Edith Piaf.
MALU
Frida Khalo.
AMAURI
Clarice.
MALU
Pagu.
AMAURI
Anne Frank.
MALU
Eu sou uma cidade para
você. E você toca Chet Baker de fundo em Amsterdam pra mim.
(recomeça Chet Baker)
AMAURI
Meu saxofone.
MALU
Vou adorar morrer nos
teus braços.
(luz em resistência ao
som da música)
FIM
Novembro de 2009
(C) 2009 Ruy Jobim Neto /
todos os direitos reservados
all rights reserved
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