sexta-feira, 8 de abril de 2022

Das Horas Cruas

 


 DAS HORAS CRUAS

de Ruy Jobim Neto

Personagens:

 

AMAURI, homem maduro

MALU, jovem garota

Época: atual

Local: uma metrópole

A ação se passa no atelier do artista, enquanto ele a desenha.

Um atelier sem limites entre o hoje e o vento. O som é de Chet Baker.

....

 

MALU

A malha fina entre o teu desejo e a minha pele te remete aos teus sonhos.

AMAURI

Eu não desenho sonhos.

MALU

Até ontem. Hoje você é o escritor das formas. Me seduz e me cobre de vontade.

AMAURI

Você seduz.

MALU

Eu me atenho, apenas.

AMAURI

Você fez amor comigo.

MALU

Ainda não. Eu pulei para a carne de tua realidade, só isso. Eu permiti duas ou três iniciativas. Duas ou três. Você bem que soube aproveitar.

AMAURI

E agora te desenho.

MALU

E agora me desenha. Mas eu não paro, você sabe.

AMAURI

Isso. Anda.

MALU

Teu universo criativo.

AMAURI

Anda por entre as florestas.

MALU

Eu caminho por entre as velas acesas.

AMAURI

No meio da videira.

MALU

A videira.

AMAURI

Te posso sentir assim, meio cabernet.

MALU

Eu desando para você. Faço pose e admito que você me esquadrinhe. Eu me sinto assim, uma Mona Lisa.

AMAURI

Gioconda.

MALU

Abaporu.

AMAURI

Nascimento de Vênus.

MALU

Sou Rosa Luxemburgo e sou Pagu.

AMAURI

Pode se vestir agora. O vento não lhe cai bem.

MALU

Sou Olga e sou Anne Frank.

AMAURI

(joga o roupão para ela) Amsterdam é triste.

MALU

É nada.

AMAURI

Chet Baker morreu lá. Pulou.

MALU

Ao lado do sax. Ninguém morre triste em Amsterdam ao lado de um sax.

AMAURI

Veste.

MALU

Eu sigo até você. Olho, me insinuo, te deixo, te engano.

AMAURI

Eu vou te levar a Amsterdam.

MALU

Não. Se você me levar até lá, vai me mostrar onde ele morreu. Não quero.

AMAURI

Eu te quero.

MALU

Eu sei. Por isso te provoco. Por isso me provoco. (veste-se) Minha nudez nada mais é do que a tua imaginação jogando a toalha.

AMAURI

Uma luta?

MALU

Não. É um decolar de emoções. Eu sou mulher. Conheço isso desde que me dou por gente.

AMAURI

Me atiça.

MALU

Isso é uma ordem ou uma afirmação?

AMAURI

Você é Cleópatra.

MALU

Então me morde e me mata.

AMAURI

Já pensou em morrer?

MALU

O tempo todo. Quando não penso nisso, é por que eu tô te seduzindo.

AMAURI

Você é o meu sax?

MALU

Não.

AMAURI

O que é você, então?

MALU

Partitura. A música que eu apresento tem pizzicatos e codas.

AMAURI

Um acorde?

MALU

Não acorde. Deixa que eu mesma te absorva.

AMAURI

Quer um vinho?

MALU

Quero você, antes de tudo. Você perturba a sua própria paz. Você me traz aqui, me atrai, me desperta, me incomoda. Faz tudo o que eu quero. Faz mais do que isso. Me atrapalha.

AMAURI

Meia taça?

MALU

O teu brinquedo não cansa. Quero você nu.

AMAURI

(olha ela pelo vidro da taça, segue como se a filmasse com a taça de vinho) O aroma do cabernet atiça todas as sombras.

MALU

A cidade lá fora não sabe da gente. Você não sabe da gente. Tudo o que você tem sou eu e essa taça. Agora me engole, me degusta, me cheira. Me bebe.

AMAURI

Malu.

MALU

Sem nomes. Lá fora sou Maria Lúcia. Aqui não sou nada além de um vestígio de teu lápis. Fica nu pra mim.

AMAURI

Sou Amauri, mas você me quer outro.

MALU

Nada de nomes. Não sei quem somos. (para a platéia, com foco sobre ela) Dia desses, ele me quis confidente. Fui. Noutro dia, ele me despiu eu estando louca. Uma louca, ele disse. Daquelas que se arrebentam nas pedras. Lembrei logo de Camille. Era a última das loucas. Todas as mãos e os pés são de Camille. Ele pretendeu que nós dois nos amássemos no brilho da lua. Eu falei que não tinha lua, que a lua era uma abstração. Eu me apaixonei, mas não podia demonstrar. O homem maduro te deixa impune, você dá a ele a licença poética para ele te ensinar o que não é ensinável. Eu nem sei se essa palavra existe.

AMAURI

(foco nele) Em Amsterdam não existe.

MALU

(ainda, para a platéia) Eu queria ser Anne Frank e escrever o diário. (apaga o foco dele) Quem sabe eu escreveria até dentro da câmara de gás. Eu sou bem louca para essas coisas. Faço um solilóquio, mas são meus pensamentos que me deixam sem fôlego. Uma guria, disse ele. Uma jovem que cai ao chão toda vez que o tiro corre solto. A bala perdida é o amor que te devora. Ela te penetra as carnes, os músculos, te deixa vulnerável.

AMAURI

(foco nele) Uma guria.

MALU

O homem maduro nada mais é do que a lua. Tem jeito de noite, é abstração. (apaga o foco dele) Faço o solilóquio e percebo que tudo em minha volta se resolve em cantos e velas que quase acendem. Quando a bala te alcança, ela não mede esforços. Ela te agride, te maltrata, te lambuza de medo e noites lindas. Aí vem o dia e te conta histórias. E então você não sabe mais em quem acreditar.

 

(luz geral retorna)

AMAURI

Até ontem eu tinha um merlot. Comprei uns queijos, mas não tinha a combinação certa.

MALU

Você está me contando isso por quê?

AMAURI

Quero justificar a falta sua ontem à noite, por isso eu tinha a combinação errada.

MALU

E hoje é a certa?

(encerra a música)

AMAURI

O que eu aprendi com você?

MALU

Que não é tão chato assim morrer em Amsterdam com um saxofone ao lado.

AMAURI

Eu disse para mim que fazendo amor contigo hoje seria sufocante.

MALU

Gostei.

AMAURI

Que eu te mataria aos poucos em meus traços, e não deixaria pedra sobre pedra daquilo que eu sei de ti.

MALU

Agora fica nu para mim.

AMAURI

Eu sonhei te beijando, você colorida de todos os matizes, você impregnada de grafite e borracha, você consumida pela ânsia de me deitar, de beijar meu peito, minha pele, de me colocar miserável.

MALU

Você me mataria?

AMAURI

Penso que não.

MALU

E admite que eu suma de sua vida? Que eu brinque de você e pose para teus olhos que não me vêem mais? Que eu partilhe sua perda de gênero homem, quando ganha o gênero hominídeo?

AMAURI

(foco apenas nele, ele para a platéia) Eu não sou Rodin nem sou Botero. Deixo as tintas aguadas para Monet. Meu pontilhismo me alcança à noite, sou dor e é só. A mulher marca presença ao som de Chet Baker só porque Chet Baker pede isso, a música meio que embala um pedido.

MALU

(foco nela) Ei, garçom. Chet Baker. (começa outra faixa de Chet Baker)

AMAURI

O amor que você faz com a garota dos teus delírios é quem leva teu lápis. À noite, na sua cama vazia, a música perpassa as idéias, ela chama o corpo para você, ela chama o corpo até você. (ela se olha num espelhinho) A imaginação brinca com o teu sexo, ela te consome como a segunda parte da música.

MALU

(foco nela) Fica nu pra mim. (apaga o foco dela)

AMAURI

Sem nomes, ela disse. O corpo dela não tem nome, não tem RG. O endereço se perdeu no bolso, o celular não tinha crédito e o e-mail não foi anotado. Só uma garota, no travesseiro. Ela se vira para ser abraçada. Uma guria, eu disse. E aquela pele perseguida em volteios e partes que não se completam é tudo ao mesmo tempo. Para o homem, as curvas são o sinal de bom corpo, de boa prole. Para a guria, a menina, a jovem, nada mais é do que artifício. E ela é a guia para todas as estradas possíveis.

(luz geral)

MALU

Quando vamos fazer amor que nem ontem?

AMAURI

Dança comigo?

MALU

Você e Chet Baker. Por que não muda de faixa?

AMAURI

Meu gosto te inferniza?

MALU

Contanto que você não me leve a Amsterdam.

AMAURI

Vou te levar ao lugar crucial.

MALU

(beija-o) Não.

AMAURI

Malu.

MALU

Sem nomes.

AMAURI

Quer me ouvir dizer “eu te amo”?

MALU

Quero, mas só quando você estiver dentro de mim, preso e miserável.

AMAURI

Quero teu e-mail.

MALU

Nunca.

AMAURI

Me passa o teu celular.

MALU

Enlouqueceu.

AMAURI

Quero te levar até tua casa.

MALU

Vou fugir daqui.

AMAURI

Vou rir de tuas fotos, vou conhecer teus bichos de pelúcia, falar contigo no MSN.

MALU

Escuta aqui, eu sou teu brilho de vida, eu sou teu sopro de vontade, tua coisa que pulsa. Não é pra me moldar, não. Não é assim que eu funciono.

AMAURI

Vou morrer de tesão, pela manhã.

MALU

Eu sei. Você me come com os olhos e me fatia em porções miúdas. Morde meus ombros, meu peito te acaricia e teus dedos são automóveis.

AMAURI

Você é uma cidade.

MALU

Nem tanto. Sou apenas uma estrada vicinal que você percorre à noite, com farol de milha.

AMAURI

Quer mais vinho?

MALU

Quero você. E não penso em competir com ninguém.

AMAURI

Sem nomes, você disse.

MALU

Nossas regras são simples: há uma cidade lá fora, uma metrópole em que centenas, se não for milhares, milhares de casais estão na coesão de seus desejos neste exato instante.

AMAURI

Você fala bonito.

MALU

Aprendi contigo, mas não admito isso na tua frente que é pra não te deixar pior do que eu te encontrei.

AMAURI

Fala mais.

MALU

Teu universo criativo me atordoa. Tuas velas e caminhos aquáticos, tuas florestas me engalfinham. Eu nem sei bem o que somos, o que pensamos das coisas direito. Eu chego aqui, mostro o meu seio, você o acaricia e o beija assim que abre a porta. Eu entro, você me despe e me desperta em beijos.

AMAURI

Continua.

MALU

No instante seguinte, meus pelos pubianos são tua realidade, apenas. Nada além deles. Tudo o que eu digo de novidade do mundo externo não conta.

AMAURI

Sem nomes, você disse.

MALU

Eu nua, você munido de tesão. O chuveiro despeja água sobre tudo o que somos, e você me acaricia, me enlaça, me penetra brincando. Brincando de mim.

AMAURI

Vou te levar pra Búzios.

MALU

Melhor que Amsterdam, nesse momento. E se os holandeses me prenderem por meia hora numa saleta de aeroporto, o que eu faço? Digo que sou tua e eles me expulsam diretamente para os teus braços? Digo que sou tua e me jogo de costas na cama para você me encontrar inteira?

AMAURI

Se eu tivesse um mapa da tua emoção, um guia das ruas dos teus sentimentos...

MALU

Um mapa não adianta. Você não me desvenda e eu te devoro.

AMAURI

Diga que é minha e eles te expulsam.

MALU

Digo que sou tua e eles carimbam assim no meu passaporte: “persona mais do que non grata”.

AMAURI

Eu te conto as histórias que me contavam quando eu quis viajar.

MALU

Eu sei. E você me leva até Amsterdam nos teus sonhos.

 

(encerra Chet Baker)

AMAURI

Eu fico nu pra você.

MALU

Não duvido. Eu te completo.

AMAURI

Vou te levar a Belfast. Você vai adorar Positano. Vamos dormir em Zurich e brindar nossas taças no Kremlin.

MALU

Me desenha.

AMAURI

Mais um?

MALU

Eu deito na sua cama, primeiro. E daí você relaxa enquanto eu estiver fazendo as minhas coisas. A lápis.

AMAURI

Sem nomes, você disse.

MALU

Sem nomes, eu disse. E diga que me ama apenas quando você estiver dentro de mim.

AMAURI

Direi.

MALU

Me surpreenda.

AMAURI

Irei te amar como nunca. (começa a se deitar)

MALU

Me fale coisas que eu nunca ouvi. (começa a se deitar também)

AMAURI

Eu já te chamei de Camille Claudel?

MALU

Não farei os pés e as mãos para você. Deixarei a teu critério.

(vão falando simultaneamente)

AMAURI

Olga Benário.

MALU

Billie Holiday.

AMAURI

Tarsila.

MALU

Erêndira.

AMAURI

Rosa Luxemburgo.

MALU

Sarah Kane.

AMAURI

Edith Piaf.

MALU

Frida Khalo.

AMAURI

Clarice.

MALU

Pagu.

AMAURI

Anne Frank.

MALU

Eu sou uma cidade para você. E você toca Chet Baker de fundo em Amsterdam pra mim.

(recomeça Chet Baker)

AMAURI

Meu saxofone.

MALU

Vou adorar morrer nos teus braços.

(luz em resistência ao som da música)

FIM

 

Novembro de 2009

(C) 2009 Ruy Jobim Neto / todos os direitos reservados

all rights reserved




Fulinaíma MultiProjetos

www.centrodeartefulinaima.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O fauno e a flauta

O fauno e a flauta para Daniela Pace pela imagem musa   o fauno lê Baudelaire do outro lado da trama enquanto dorme a donzela com u...