ancestral
há muito tempo não recebo
cartas de ninguém
mas não rezo padre nossos
simplesmente para dizer amém
já fui católico rezei terços ladainhas
acompanhei a procissão dos afogados
na Tapera
para soletrar a palavra Cacomanga
e entender que o barro da cerâmica
trago grudado na minha íris retina
meu batismo de fogo
foi numa Santa Cecília
entre víboras e serpentes
mordi a hóstia do padre
sua saia preta me levou ao pânico
de sonhar com juízes
e hoje saber o que são
minha África
são os olhos negros
de Madame Satã
na língua tenho uma sede felina
na carne essa fome pagã
sou um homem comum
filho de Ogum com Iansã
Dani-se morreale
se ela me pisar nos calos
me cumer o fígado
me botar de quatro
assim como cavalo
galopar meus pelos
devorar as vértebras
Dani-se
se ela me vier de unhas
me lascar os dentes
até sangrar o sexo
me enfiar a faca
apunhalar meus olhos
perfurar meus dedos
Dani-se
se o amor for bruto
até mesmo sádico
neste instante lírico
se comédia ou trágico
quero estar no ato
e Dani-se o fato
deste sangue quente
em tua boca dos infernos
deixa queimar os ossos
e explodir os nossos
poemas físicos pós modernos
Dionisíaca
hoje é domingo
de Hera me vingo
com minha sarcástica ironia
fisto-me de Dionísio
nessa festa pras Bacantes
me consagro teu amante
pelos vinhedos de Baco
no ápice sagrado
da su-real pornofonia
entre os lençóis
o outubro
me deixou no tudo nada
a luz branca sem sono
em nossos corpos de abandono
ela arquitetava uma nesga
entre as frestas da janela
luz do luar nos olhos dela
girassóis em desmantelos
por entre poros entre pelos
minhas unhas tuas costas
Amsterdã nos teus cabelos
o que Van Gog me trazia
era branca noite de outono
que amanheceu sem ver o dia
nossos corpos estavam banhados
de vinho tinto e poesia
poema atávico
e se a gente se amasse uma vez só
a tarde ainda arde primavera tanta
nesse outubro quanto
de manhãs tão cinzas
nesse momento em Bento Gonçalves
Mauri Menegotto termina
de lapidar mais uma pedra
tem seus olhos no brilho da escultura
confesso tenho andado meio triste
na geografia da distância
esse poema atávico tem
a cor da tua pele
a carne sob os lençóis
onde meus dedos
ainda não nasceram
algum deus
anda me pregando peças
num lance de dados mallarmaicos
comovido
ainda te procuro em palavras aramaicas
e a pele dos meus olhos anda perdida
em teu vestido
Artur Gomes
Do livro O Poeta Enquanto Coisa
Disponível para compra em
https://www.editorapenalux.com.br/loja/o-poeta-enquanto-coisa
OSWALD, A UTOPIA DO MATRIARCADO E O FIM DA
MACHONARIA
Por Ademir Assunção
Relendo A Utopia Antropofágica, especialmente os dois
ensaios A Crise da Filosofia Messiânica e A Marcha das Utopias, não tem como
não notar: Oswald de Andrade é o mais visionário, radical e avançado dos nossos
pensadores modernistas. Sem data de validade vencida.
Suas especulações sobre o matriarcado e o patriarcado
não se fixam meramente no “empoderamento da mulher” – termo em moda e ainda
combatido pelos espíritos mais obtusos.
Na visão do antropófago de ótima dentição, o matriarcado é
algo muito mais radical e envolve, no mínimo, dois aspectos: o filho de Direito
Materno e o fim da família como a conhecemos hoje, com a autoridade centrada na
figura paterna. Com isso, a consequente extinção da herança e da sociedade de
classes.
Num resumo do resumo do resumo: com o filho de Direito
Materno e o fim da família como a conhecemos hoje, a criança passa a ser filha
ou filho de toda a espécie humana. Portanto, toda a espécie humana passa a ser
responsável por zelar por sua vida e seu desenvolvimento.
Isso não significa, obviamente, a quebra dos laços
físicos, afetivos e individuais com a mãe, em primeira instância, e com o pai.
Significa outro ordenamento social em que a espécie humana é responsável e
ligada diretamente a todos os seus indivíduos.
Com isso, não há mais sentido na manutenção da herança e
muito menos na sociedade dividida em classes – ideário que assusta até mesmo
muitas mulheres, aquelas que sentem horríveis calafrios diante da perspectiva
de perderem seus privilégios de classe, numa sociedade ainda patriarcal.
Para Oswald, a restauração do matriarcado, presente em
quase todas as sociedades ancestrais, com a consequente derrocada do
patriarcado, é o grande conflito humano, mas a marcha está em curso e acabará
acontecendo – confirmando, por outro viés, as previsões de Marx.
O que Oswald talvez não pudesse prever no final dos anos
1940 e início dos anos 1950, quando escreveu os dois ensaios, é que a espécie
humana, antes da confirmação das previsões, pudesse acabar consigo mesma, em
função dos que resistem a ferro, fogo, bala e bomba às mudanças inevitáveis.
O que pode parecer simplório assim exposto soa
convincente ao extremo nos dois ensaios, apoiados em fartas referências
filosóficas, sociológicas, teológicas e históricas, e repletos de observações
agudas e fatalmente polêmicas:
“Não é novidade nenhuma dividirem-se os regimes
fundamentais pelos quais a humanidade se rege em Matriarcado e Patriarcado.
Aquele é o regime do Direito Materno e este o do Direito Paterno. Aquele tem
presidido à pacífica felicidade dos povos marginais, dos povos a-históricos,
dos povos cuja finalidade não é mais do que viver sem se meterem a
conquistadores, donos do mundo e fabricantes de impérios.”
“O professor italiano Ernesto Grassi, que nos tem
visitado, pende hoje para uma tese que realça as virtudes do Matriarcado,
principalmente as do a-historicismo, em face do descalabro a que nos vem
conduzindo o Patriarcado, cuja maior façanha é a descoberta da bomba de
hidrogênio e que tem como sua carta de identificação o capitalismo, desde as
suas formas mais obscuras e larvadas até a glória de Wall Street.”
“[Karl] Mannheim no seu detalhado trabalho [Ideologia e
Utopia] não esqueceu de assinalar os vícios de que geralmente se recheia toda
situação conservadora. Fala no ‘tipo de mentalidade ideológica’ a que
poderíamos chamar de ‘mentalidade hipócrita’ ou farisaica, que se caracteriza
pelo fato de que historicamente tem a possibilidade de descobrir a
incongruência entre as ideias e a própria conduta mas, em vez de fazê-lo,
oculta isso em benefício de interesses vitais ou emocionais.
Enfim, existe o tipo de mentalidade ideológica baseado
num engano deliberado, onde a ideologia deve ser interpretada como uma mentira
intencional.”
“A utopia é sempre um sinal de inconformação e um
prenúncio de revolta.”
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