domingo, 24 de agosto de 2025

a utopia do matriarcado

              ancestral

 

há muito tempo não recebo

cartas de ninguém

mas não rezo padre nossos

simplesmente para dizer amém

 

já fui católico rezei terços ladainhas

acompanhei a procissão dos afogados

na Tapera

para soletrar a palavra Cacomanga

e entender que o barro da cerâmica

trago grudado na minha íris retina

 

meu batismo de fogo

 foi numa Santa Cecília

entre víboras e serpentes

 

mordi a hóstia do padre

sua saia preta me levou ao pânico

de sonhar com  juízes

e hoje saber o que são

 

minha África

são os olhos negros

de Madame Satã

na língua tenho uma sede felina

na carne essa  fome pagã

sou um homem comum

filho de Ogum com Iansã

 

Dani-se morreale


se ela me pisar nos calos
me cumer o fígado
me botar de quatro
assim como cavalo
galopar meus pelos
devorar as vértebras
Dani-se


se ela me vier de unhas
me lascar os dentes
até sangrar o sexo
me enfiar a faca
apunhalar meus olhos
perfurar meus dedos
Dani-se


se o amor for bruto
até mesmo sádico
neste instante lírico
se comédia ou trágico
quero estar no ato
e Dani-se o fato
deste sangue quente
em tua boca dos infernos
deixa queimar os ossos
e explodir os nossos
poemas físicos pós modernos


Dionisíaca

 

hoje é domingo
de Hera me vingo
com minha sarcástica ironia

fisto-me de Dionísio
nessa festa pras Bacantes

me consagro teu amante
pelos vinhedos de Baco 
no ápice sagrado

da  su-real pornofonia

 

entre os lençóis

 

o outubro 
me deixou no tudo nada 
a luz branca sem sono
em nossos corpos de abandono

ela arquitetava uma nesga
entre as frestas da janela
luz do luar nos olhos dela
girassóis em desmantelos
por entre poros entre pelos
minhas unhas tuas costas 
Amsterdã nos teus cabelos 

o que Van Gog me trazia
era branca noite de outono
que amanheceu sem ver o dia 
nossos corpos estavam banhados
de vinho tinto e poesia

 

poema atávico

 

e se a gente se amasse uma vez só
a tarde ainda arde primavera tanta
nesse outubro quanto
de manhãs tão cinzas

 

nesse momento em Bento Gonçalves
Mauri Menegotto termina
de lapidar mais uma pedra 
tem seus olhos no brilho da escultura

 

confesso tenho andado meio triste
na geografia da distância
esse poema atávico tem

a cor da tua pele
a carne sob os lençóis

 onde meus dedos
ainda não nasceram

 

algum deus

anda me pregando peças
num lance de dados mallarmaicos

comovido
ainda te procuro em palavras aramaicas 
e a pele dos meus olhos anda perdida
em teu vestido

 

Artur Gomes

Do livro O Poeta Enquanto Coisa

Disponível para compra em

https://www.editorapenalux.com.br/loja/o-poeta-enquanto-coisa 




OSWALD, A UTOPIA DO MATRIARCADO E O FIM DA MACHONARIA

 Por Ademir Assunção

 Relendo A Utopia Antropofágica, especialmente os dois ensaios A Crise da Filosofia Messiânica e A Marcha das Utopias, não tem como não notar: Oswald de Andrade é o mais visionário, radical e avançado dos nossos pensadores modernistas. Sem data de validade vencida.

 Suas especulações sobre o matriarcado e o patriarcado não se fixam meramente no “empoderamento da mulher” – termo em moda e ainda combatido pelos espíritos mais obtusos.

Na visão do antropófago de ótima dentição, o matriarcado é algo muito mais radical e envolve, no mínimo, dois aspectos: o filho de Direito Materno e o fim da família como a conhecemos hoje, com a autoridade centrada na figura paterna. Com isso, a consequente extinção da herança e da sociedade de classes.

 Num resumo do resumo do resumo: com o filho de Direito Materno e o fim da família como a conhecemos hoje, a criança passa a ser filha ou filho de toda a espécie humana. Portanto, toda a espécie humana passa a ser responsável por zelar por sua vida e seu desenvolvimento.

 Isso não significa, obviamente, a quebra dos laços físicos, afetivos e individuais com a mãe, em primeira instância, e com o pai. Significa outro ordenamento social em que a espécie humana é responsável e ligada diretamente a todos os seus indivíduos.

 Com isso, não há mais sentido na manutenção da herança e muito menos na sociedade dividida em classes – ideário que assusta até mesmo muitas mulheres, aquelas que sentem horríveis calafrios diante da perspectiva de perderem seus privilégios de classe, numa sociedade ainda patriarcal.

 Para Oswald, a restauração do matriarcado, presente em quase todas as sociedades ancestrais, com a consequente derrocada do patriarcado, é o grande conflito humano, mas a marcha está em curso e acabará acontecendo – confirmando, por outro viés, as previsões de Marx.

 O que Oswald talvez não pudesse prever no final dos anos 1940 e início dos anos 1950, quando escreveu os dois ensaios, é que a espécie humana, antes da confirmação das previsões, pudesse acabar consigo mesma, em função dos que resistem a ferro, fogo, bala e bomba às mudanças inevitáveis.

 O que pode parecer simplório assim exposto soa convincente ao extremo nos dois ensaios, apoiados em fartas referências filosóficas, sociológicas, teológicas e históricas, e repletos de observações agudas e fatalmente polêmicas:

 “Não é novidade nenhuma dividirem-se os regimes fundamentais pelos quais a humanidade se rege em Matriarcado e Patriarcado. Aquele é o regime do Direito Materno e este o do Direito Paterno. Aquele tem presidido à pacífica felicidade dos povos marginais, dos povos a-históricos, dos povos cuja finalidade não é mais do que viver sem se meterem a conquistadores, donos do mundo e fabricantes de impérios.”

 “O professor italiano Ernesto Grassi, que nos tem visitado, pende hoje para uma tese que realça as virtudes do Matriarcado, principalmente as do a-historicismo, em face do descalabro a que nos vem conduzindo o Patriarcado, cuja maior façanha é a descoberta da bomba de hidrogênio e que tem como sua carta de identificação o capitalismo, desde as suas formas mais obscuras e larvadas até a glória de Wall Street.”

 “[Karl] Mannheim no seu detalhado trabalho [Ideologia e Utopia] não esqueceu de assinalar os vícios de que geralmente se recheia toda situação conservadora. Fala no ‘tipo de mentalidade ideológica’ a que poderíamos chamar de ‘mentalidade hipócrita’ ou farisaica, que se caracteriza pelo fato de que historicamente tem a possibilidade de descobrir a incongruência entre as ideias e a própria conduta mas, em vez de fazê-lo, oculta isso em benefício de interesses vitais ou emocionais.

 Enfim, existe o tipo de mentalidade ideológica baseado num engano deliberado, onde a ideologia deve ser interpretada como uma mentira intencional.”

 “A utopia é sempre um sinal de inconformação e um prenúncio de revolta.”


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