domingo, 10 de abril de 2022

Dois Para O Saguão

 

DOIS PARA O SAGUÃO

de

Ruy Jobim Neto

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"DOIS PARA O SAGUÃO" foi apresentada pela primeira vez nas Satyrianas 2009, no dia 01 de novembro, às 02h30, numa produção da Cia. Mestremundo de Histórias, sob direção de Filipe Peña, no Teatro do Ator, em São Paulo, com a seguinte composição de elenco:

.....

CLAUDIO CABRAL........................Azevedo

ADRIANA CUBAS.......................Bianca

 

.................

 

Personagens:

AZEVEDO

BIANCA

 

Bianca é atriz e procura apartamento. Chove. Ela está isolada na portaria de um prédio onde foi procurar imóvel. Azevedo é o porteiro do final de tarde. Ela não tem mais permissão para ver imóvel algum, pelo horário. Ela está impaciente, ele faz algumas ações do seu personagem, rega planta, arruma tapete, coisas assim.

 

Época: atual

Ação: o saguão de um prédio

 

....

 

BIANCA

Não tem mais como?

AZEVEDO

Tem não.

BIANCA

Nenhum apartamento?

AZEVEDO

O horário já bateu. Não pode ver mais nenhum.

BIANCA

Nem kitchnete?

AZEVEDO

Não tem kitch neste prédio.

BIANCA

Entendo. (tempo. Fica impaciente) E essa chuva, não para mais, é?

AZEVEDO

Acho que não, moça. Foi todo o feriado assim.

BIANCA

Que bosta. Ops. Desculpe.

AZEVEDO

Tudo bem.

BIANCA

Na sua função você não pode dizer palavrão, né?

AZEVEDO

Não.

BIANCA

Nem o pessoal que mora no prédio?

AZEVEDO

O pessoal diz.

BIANCA

Tipo o quê? Que palavrão, por exemplo?

AZEVEDO

Não posso dizer.

BIANCA

Ah, é. (tempo) E se eu disser?

AZEVEDO

Não pega bem palavrão na boca de mulher.

BIANCA

Quem disse isso?

AZEVEDO

Todo mundo diz.

BIANCA

Todo mundo quem?

AZEVEDO

Todo mundo, oras.

BIANCA

Quem, por exemplo?

AZEVEDO

Os caras lá no boteco.

BIANCA

Eles devem falar palavrão adoidado.

AZEVEDO

O tempo todo.

BIANCA

E você fala palavrão quando tá lá com eles, aposto.

AZEVEDO

Tem que falar, né?

BIANCA

É...Em Roma como os romanos.

AZEVEDO

Quê?

BIANCA

Nada. É só uma expressão.

AZEVEDO

Ah.

(silêncio)

BIANCA

Qual o seu nome?

AZEVEDO

Azevedo.

BIANCA

Só isso? Azevedo?

AZEVEDO

É assim que me chamam.

BIANCA

Quem te chama assim? Os caras lá no boteco?

AZEVEDO

Também.

BIANCA

Também? Tem mais gente que te chama de Azevedo?

AZEVEDO

Minha mãe.

BIANCA

Tua mãe te chama de Azevedo?

AZEVEDO

Ela que espalhou meu nome. E fiquei sendo Azevedo.

BIANCA

Tua mãe?

AZEVEDO

É.

BIANCA

Foi em homenagem ao teu pai? Ele é que é Azevedo?

AZEVEDO

Não. Azevedo foi o último namorado dela.

BIANCA

Entendi ... (tempo) Eu sou atriz.

AZEVEDO

Tá em alguma novela?

BIANCA

Ainda não. Nem sei se quero. Faço teatro e já fiz alguns curtas.

AZEVEDO

Não fez novela?

BIANCA

Não.

AZEVEDO

Nenhuma?

BIANCA

Não.

AZEVEDO

Ah.

BIANCA

Por quê? Você vê televisão? Tem televisão aí, no balcão?

AZEVEDO

Tem não.

BIANCA

Por quê? Não te deixam ver TV?

AZEVEDO

Não. A última vez que vi jogo do Brasil na Copa eu dormi. E aí me tiraram a TV.

BIANCA

Você não pode dormir, né?

AZEVEDO

Não.

BIANCA

(ri) E você dormiu com jogo do Brasil na Copa?

AZEVEDO

Pra você ver.

BIANCA

(para de rir) Entendo. (tempo) Eu já fiz comercial.

AZEVEDO

De cerveja?

BIANCA

Não. De locadora de automóveis. Daquelas grandes, sabe?

AZEVEDO

Nunca vi.

BIANCA

Você tem carro?

AZEVEDO

Não. Eu venho de ônibus, pro trabalho. Às vezes venho de bicicleta.

BIANCA

Por isso você não vê comercial de locadora de carro.

AZEVEDO

É.

(silêncio)

BIANCA

Você é casado, Azevedo? Posso te chamar assim, de Azevedo?

AZEVEDO

Pode. Mas não sou casado, não. Sou amasiado.

BIANCA

Amasiado.

 

AZEVEDO

É. Eu vivo com uma mulher.

BIANCA

Ela faz o quê?

AZEVEDO

Atriz é sempre curiosa, desse jeito?

BIANCA

Eu sou curiosa. Tua mulher faz o quê?

AZEVEDO

Ela não é minha mulher. É amasiada.

BIANCA

Ah.

AZEVEDO

Ela cozinha num restaurante por quilo.

BIANCA

E é tua amasiada por quê?

AZEVEDO

Cê é curiosa, hein?

BIANCA

Sou mesmo.

AZEVEDO

A gente tá esperando o momento certo pra se casar.

BIANCA

Momento certo? Que momento certo?

AZEVEDO

A hora de juntar os trocados.

BIANCA

A vida é curta, Azevedo. Se não casar, fica pra titio. Você daria um bom titio, Azevedo?

AZEVEDO

Sou filho único.

BIANCA

E mesmo assim tua mãe te chama de Azevedo?

AZEVEDO

É.

BIANCA

Por causa do ex dela?

AZEVEDO

É.

BIANCA

Ah, pelo amor de Deus! Que é isso!

AZEVEDO

Sou Azevedo e pronto.

BIANCA

Claro que não! Ninguém é “Azevedo e pronto”! Qual o teu primeiro nome?

AZEVEDO

Pelópidas.

(tempo)

BIANCA

É melhor Azevedo, mesmo.

AZEVEDO

Não falei?

(silêncio)

BIANCA

Posso te chamar de Pelópidas?

AZEVEDO

Não. Eu sou Azevedo.

BIANCA

Se eu te chamar de Pelópidas, você me responde?

AZEVEDO

Não. Já me acostumei com Azevedo.

BIANCA

Entendo. (tempo) Sabe quem era Pelópidas?

AZEVEDO

Não.

BIANCA

Um ator famoso. O Paulo Gracindo, lembra dele? Ele era Pelópidas. Aí ele trocou o nome.

AZEVEDO

Que nem eu.

BIANCA

Mas no caso dele, ele já era ator, sabe? E ninguém ia chamar ele de Pelópidas isso, Pelópidas aquilo. “O grande ator Pelópidas tal coisa”. Não. Ele trocou o nome.

AZEVEDO

O meu foi minha mãe que trocou.

BIANCA

É, eu sei. No caso dele, até as pessoas chamavam ele de outra coisa. Teve uma empregada que chamava ele de “Seu Petrópolis”.

AZEVEDO

Ninguém sabe o meu nome. Só a senhorita.

BIANCA

Senhorita? Que bonitinho. É difícil um cavalheiro chamar uma dama de senhorita, hoje em dia. Aposto que você não usa nem internet, não é? Você sabe o que é internet, Pelópidas, ops....Desculpe...Azevedo?

AZEVEDO

Sei. Um cara da internet vem instalar nos apartamentos quase toda semana. Ou vem fazer reparo.

BIANCA

Mas você nunca acessou? Quer dizer, nunca entrou na internet? Você tem computador?

AZEVEDO

Na administração do prédio tem computador. Eu mesmo nunca mexi num.

BIANCA

Que dó.

AZEVEDO

Que dó nada. O pastor lá na Igreja diz que computador é coisa do demo.

BIANCA

Você acredita nisso?

AZEVEDO

Se o pastor disse.

BIANCA

Mas isso é o pastor dizendo. E você, mesmo, o que acha?

AZEVEDO

Eu acho isso que o pastor disse.

BIANCA

Tá.

(silêncio)

BIANCA

Essa chuva não para, né?

AZEVEDO

É.

BIANCA

Vem pouca gente aqui nesse prédio.

AZEVEDO

É feriado. Não tem ninguém na cidade.

BIANCA

Mas uma cidade tão grande. Com tanta gente, tanto carro...(tempo) E você... você já fez alguma perversão, Azevedo?

AZEVEDO

Se eu fiz o quê?

BIANCA

Alguma perversão. Uma perversãozinha, assim, de vez em quando nessa sua vida.

AZEVEDO

Fiz não. É pecado, o pastor disse.

BIANCA

Ah, mas esse pastor não sabe toda a verdade da vida, não.

AZEVEDO

Claro que sabe. Ele lê muita coisa.

BIANCA

Mas não é tudo o que tá escrito que é verdade, Azevedo.

AZEVEDO

Que conversa, essa.

BIANCA

Se você fizesse alguma perversão, que perversão faria?

AZEVEDO

Eu não posso pensar nessas coisas, não, moça.

BIANCA

Me chama pelo meu nome. Meu nome é Bianca.

AZEVEDO

Não é costume aqui do prédio chamar as pessoas pelo nome.

BIANCA

Chama do quê, então?

AZEVEDO

De senhor, de senhora, de senhorita.

BIANCA

Afe. Quem determinou isso?

AZEVEDO

São as regras.

BIANCA

Nossa, mas que prédio mais rigoroso. Ainda bem que não consigo alugar apartamento aqui, tá muito caro. Já pensou se eu alugasse e viesse morar aqui? Credo! Nem gosto de pensar!

AZEVEDO

É um bom prédio, esse.

BIANCA

É muito rigoroso! Pra quem gosta de ser chamado de senhor, de senhora ou senhorita, tá bem, mas não pra quem não tá acostumada...Feito eu.

AZEVEDO

Então não daria certo, mesmo.

BIANCA

É. (tempo) Mas você enrolou, enrolou, desviou e não respondeu à minha pergunta. Então, Azevedo, que perversão você faria?

AZEVEDO

Nenhuma.

BIANCA

Nenhuma? Nenhuminha? (aproxima-se) Assim, nem uma perversãozinha? No final de uma tarde, uma chuva danada lá fora, com tanto apartamento vazio lá em cima, de dois quartos, sem móveis, e eu aqui, uma pobre coitada sem teto e sem casa, procurando imóvel. Não te dá nenhuma vontade? Você não pensa em nada disso, não?

AZEVEDO

Pensar eu penso, que sou homem!

BIANCA

Ahá! Chegamos a um denominador comum!

AZEVEDO

O quê?

BIANCA

Você, porteiro da tarde, Azevedo Pelópidas, ou Pelópidas Azevedo, sei lá, e eu, atriz, Bianca Matheus, brasileira, adulta e vacinada e sem teto...Não te passa uma vontade, às vezes, quando você vê uma mulher bonita feito eu, assim? Uma vontade louca de transgredir, de fazer uma loucura que você nunca fez e de que vai lembrar pra sempre nessa sua vida de bosta?

AZEVEDO

A senhorita tá passando bem?

BIANCA

Porra! Me chama de Bianca, caralho! Esse é o meu nome, Pelópidas!

AZEVEDO

Azevedo, por favor.

BIANCA

Humm...(aproxima-se, lânguida) Tá ficando enfezadinho, é?

AZEVEDO

Eu vou ter que colocar a senhorita pra fora do prédio...

BIANCA

Por quê? O que eu fiz? Eu te apontei uma arma? Te machuquei? Te xinguei, por acaso?

AZEVEDO

Não é o que a senhorita fez, mas é o que a senhorita tá pensando em fazer.

BIANCA

Bianca, porra! Custa me chamar de Bianca?

AZEVEDO

Eu vou ter que expulsar a senhorita.

BIANCA

Expulsar por quê? Só porque eu disse “porra”?

AZEVEDO

A senhorita sabe que não.

BIANCA

Bianca.

AZEVEDO

(corrige) Bianca.

BIANCA

Então é pelo quê? Hummm.....Você está ficando excitado com toda essa minha conversa, né? Tá todo excitado, aí, posso até ver...Humm...Eu, uma branquelinha linda, assim, no final de tarde, dando sopa na sua portaria, no saguão desse prédio de apartamentos caros, um monte de apartamento vazio lá em cima, cheio de quartos, com banheiras, com janelas que dão pros outros prédios...Convidando você pra uma perversãozinha no meio de um feriado com chuva...

AZEVEDO

Eu vou ter que expulsar a senhorita...

BIANCA

Experimenta! Toca em mim! Me pega! Me arrasta pra fora!

AZEVEDO

Eu não costumo machucar mulher.

BIANCA

(irônica) Oh... (aproxima-se ainda mais) Um homem cavalheiro...Daqueles tão cavalheiros que vê uma oportunidade passar embaixo da sua fuça e não pega... E depois vai pra casa, e pra não pensar nisso, vai dar uma com a mulher...

AZEVEDO

Amasiada.

BIANCA

Tá, que seja. Com a amasiada...E aqui mesmo, nesse saguão, já que você não tem nem TV e nem ninguém a não ser eu? Não te passa nada pela cabeça não, Pelópídas?

AZEVEDO

Azevedo, por favor.

BIANCA

E se eu transgredir e te chamar de Pelópidas, você vai fazer o quê comigo? Vai me bater? Vai me expulsar daqui nessa chuva toda? Ou eu posso entrar nos elevadores e subir lá pra um dos apartamentos vazios e você nem vai saber onde me encontrar?

AZEVEDO

Eu tenho todas as chaves aqui comigo.

BIANCA

Que excitante... (parte pra cima dele) Um homem sem transgressão. Com todas as chaves do prédio. Um homem com acesso, com mulher amasiada, com mãe que batiza ele com sobrenome do namorado, que não vê TV nem comercial de locadora de carro, que não entra na internet, que não faz o que tá pensando só porque o pastor assim determina...

(AZEVEDO agarra BIANCA e tasca um beijo nela, solta ela em seguida, limpa os lábios com a manga comprida da camisa, ela jogada no chão olha pra ele, se desconcerta)

AZEVEDO

Melhor a senhorita ir embora.

BIANCA

É. Senão você me ataca aqui mesmo, nesse saguão. E vou me embora nessa chuva toda. Vou ficar toda molhada, vou pegar uma gripe daquelas, e tudo por culpa desse teu beijo de merda.

AZEVEDO

Eu vou pedir perdão ao pastor.

BIANCA

Vai ter que fazer mais do que isso. Você vai trepar com sua amasiada, hoje à noite, pensando em mim. E quando você ligar a TV e me vir no comercial da locadora de carro, não vai nem poder contar pra ela, nem pros seus amigos do boteco, que me deu um beijo. Ninguém vai acreditar em você. Sorte a sua que esse prédio aqui não tem câmera, senão a coisa ia complicar ainda mais pro teu lado, Pelópidas. Ops. Desculpa. Azevedo.

(ele faz menção de ir em direção a ela, de novo)

BIANCA

(afasta-se) Tá bem. Eu vou agora. Mas fique sabendo que você jamais irá se esquecer de mim. Nem que o seu último pensamento esteja quase vomitando por sua cabeça, mesmo assim eu me vou. Obrigada, viu, Azevedo? Tchau, Azevedo. (sai)

(tempo)

AZEVEDO

(pega o celular, liga) Mãe? Oi, minha mãe. Sou eu, seu filho, Pelópidas. (...) Não, mãe! Não, Azevedo não! Puta que pariu! Meu nome é Pelópidas, minha mãe! Pe-ló-pi-d...(ela desliga)...Mãe? ...Mãe?.... Mãe?

(blecaute)

 

FIM

Live em homenagem a Antônio Cícero

No próximo dia 23 às 16:hs à convite da minha amiga  Renata Barcellos BarcellArtes  estaremos nessa live em homenagem a memória de  Antônio ...