Aos
Atores
Jacques Copeau
O ator expõe-se a perder sua face e a perder sua
alma. Ele as encontra falseadas, ou não as encontra mais, no momento em que
necessita delas para retornar a si mesmo. Seus traços não são recuperados, seu
jeito e seu verbo permanecem excessivamente desligados, destacados, como que
separados da alma. A própria alma, com muita freqüência alterada pela
representação, excessivamente arrebatada, excessivamente ferida pelas paixões
imaginárias, contraída pelos hábitos artificiais, pisa em falso sobre o real.
Toda a pessoa do ator guarda, neste mundo humano, os estigmas de um estranho comércio.
Ele tem o ar, quando retorna ao nosso meio, de quem saiu de um outro mundo.
A profissão do ator tende a desnaturá-lo. Ela é
conseqüência de um instinto que leva o homem a desertar para viver sob as
aparências. É portanto uma profissão que os homens desprezam. Consideram-na
perigosa. Tacham-na de imoralidade, e condenam-na por seu mistério. Essa
atitude farisaica, que não foi eliminada pelas mais extremas tolerâncias
sociais, reflete uma idéia profunda. É que o ator faz uma coisa proibida: ele
representa sua humanidade e brinca com ela. Seus sentidos e sua razão, seu
corpo e sua alma imortal não lhe foram dados para que os utilize assim, como um
instrumento, forçando-os e desviando-os em todos os sentidos.
Se o ator é um artista, ele é de todos os artistas
o que em maior grau sacrifica sua pessoa ao ministério que exerce. Ele não pode
dar nada se não se dá a si mesmo, não em efígie, mas de corpo e alma, e sem
intermediário. Tanto sujeito quanto objeto, causa e fim, matéria e instrumento,
sua criação é ele mesmo.
É aí que habita o mistério: que um ser humano
possa pensar e tratar a si mesmo como matéria de sua arte, agir sobre si mesmo
como sobre um instrumento ao qual ele deve identificar-se sem deixar de
distinguir-se, agir e ser o que age ao mesmo tempo, homem natural e marionete...
... Há alguma coisa no ator que depende daquilo
que ele é, que atesta sua autenticidade, que se nos impõe por sua maneira, sem
fraude possível, e desde que ele surge em cena, antes que tenha aberto a boca,
por sua simples presença. É essa alguma coisa que, em nosso tempo, distinguia
entre todas uma atriz como a Duse. É uma qualidade da natureza, que a arte pode
servir para iluminar, mas que não poderia imitar...
Que o ator nem sempre sinta o que representa, que
ele represente o texto sem representar a personagem nem a situação, que ele
consiga representar sem erro aparente, ou seja, mais ou menos justa e
corretamente, mesmo que não seja tocado - isto é verdade. É seu fracasso. É a
tendência que seguem os preguiçosos e os medíocres. É o martírio a que os
melhores expõem-se todos os dias, pois nenhum deles jamais sabe se não
sentir-se-á subitamente devastado pela secura em um desses horríveis momentos
em que ele se ouve falando, em que se vê representar, em que julga a si mesmo
e, quanto mais se julga, mais se evade.
Diderot dirá que "ele está comovido sem nada
sentir".
Se ele está visivelmente "comovido" é
com efeito porque ele não sentia nada. Ele estava por sentir.
A idéia de uma sensibilidade que possui a si
mesma, de uma espontaneidade que se busca, de uma sinceridade que se trabalha
provoca facilmente o sorriso. Que não se sorria depressa demais. Que se reflita
antes sobre a natureza de um ofício em que há tanta matéria a trabalhar. A luta
do escultor com a argila que modela não é nada, se a comparamos com as
resistências que opõem ao ator seu corpo, seu sangue, seus membros, sua boca e
todos os seus órgãos.
Imagino um ator diante do texto de um papel que
ele ama e compreende, cujo caráter convém à sua natureza, cujo estilo adapta-se
aos seus meios. Ele sorri de satisfação. Esse papel, ele o decifra sem esforço.
A primeira leitura que faz surpreende por sua justeza. Tudo é magistralmente
indicado, não somente na intenção geral, mas até nas pequenas nuances. E o
autor alegra-se por ter encontrado o intérprete ideal que vai levar sua obra às
nuvens: "Espere, diz-lhe o ator, ainda não o sou." é que ele não se
engana com essa primeira tomada de posse em que apenas o espírito fez sua parte.
Eis que ele se põe a trabalhar. Repete o texto à
meia-voz, com precaução, como se temesse espantar alguma coisa dentro de si
mesmo. Essas repetições confidenciais ainda guardam a qualidade da leitura. As
nuances da emoção ainda são perceptíveis para alguns auditores privilegiados. O
ator, agora, possui seu papel, de memória. É o momento em que começa a possuir
um pouco menos sua personagem. Ele vê o que deve ser feito. Compõe e
desenvolve. Realiza os encadeamentos, as transições. Racionaliza seus
movimentos, classifica seus gestos, conserta suas entonações. Olha-se e
ouve-se. Destaca-se. Julga-se. Parece não dar nada de si mesmo. Por vezes
interrompe-se em seu trabalho para dizer: não sinto isto. Propõe,
freqüentemente com razão, uma modificação no texto, uma inversão na frase, um
retoque na encenação que lhe permitiria, acredita, sentir melhor. Procura meios
de colocar-se em situação, em estado de sentir: um ponto de partida, que por
vezes estará na mímica, ou no diapasão da voz, em uma descontração particular,
em uma simples respiração... Esforça-se por encontrar uma harmonia. Arma suas
redes. Organiza a captura de alguma coisa que compreendeu e pressentiu há muito
tempo, mas que lhe permanece exterior, que ainda não entrou nele, não alojou-se
nele... Escuta com um ouvido distraído as indicações essenciais que lhe são
dadas, do proscênio, sobre as emoções da personagem, seus móveis, todo seu
mecanismo psicológico. E entretanto sua atenção parece absorvida por detalhes
irrisórios.
É então que o autor, com uma polidez excessiva,
pega pelo braço seu ilustre intérprete e diz-lhe ao ouvido: "Mas, caro
amigo, por que não mantém o que fez no primeiro dia? Estava perfeito. Seja você
mesmo."
O ator não é mais ele mesmo. E ainda não é "o
outro". O que fez no primeiro dia escapa-lhe à medida em que se põe na
situação de representar seu papel. Precisou renunciar ao frescor, ao natural,
às nuances, e a todo o prazer que lhe causava sua animação, para realizar o
trabalho difícil, ingrato, minucioso que consiste em fazer sair de uma
realidade literária e psicológica uma realidade de teatro. Precisou ordenar,
dominar, assimilar todos os procedimentos de metamorfose que são ao mesmo tempo
aquilo que o separa de seu papel e aquilo que a ele o conduz. É somente quando
tiver realizado esse estudo de si mesmo em relação à personagem dada,
articulado todos os seus meios, exercido todo seu ser em servir às idéias que
formou e aos sentimentos para os quais prepara o caminho em seu corpo, em seus
nervos, em seu espírito, até a profundeza de seu corpo, é então que
reaver-se-á, transformado, e que tentará doar-se.
Enfim o ator preenche seu papel. Não encontra nada
de fútil nem de artificial. Poderia vivê-lo sem palavras. Confronta sua
sinceridade com esse belo "silêncio interior" de que falava Eleonora
Duse.
Eis o homem exposto no teatro, oferecido em
espetáculo, posto em julgamento. Ele entra em um outro mundo. Assume essa
responsabilidade. Sacrifica-lhe todo um mundo real: inquietação, mal-estar,
pesar, sofrimento - ou antes, é libertado dele. Mas a atitude de seus comparsas
em cena, uma reação da sala, uma desordem nos bastidores, o brilho de um
refletor, a dobra de um tapete, um erro da administração, um esquecimento de
acessórios, um acidente no figurino, uma falha da memória, um lapso da boca,
uma queda passageira de sua força vital - tudo o ameaça, tudo está contra ele
que, sozinho, tem que tudo dominar; tudo pode a cada instante interpor-se entre
sua sinceridade, que nada poderia forçar quando se esquiva, e o jogo que ele
tem que jogar seja lá como for. Tudo pode despojá-lo do que ele pensava ter
dominado através de um longo trabalho, separá-lo da personagem que havia
composto de sua substância mas que pode sofrer, como esta, alterações profundas
e repentinas.
A cortina sobe e o surpreende... seu primeiro
ataque se dá um pouco involuntariamente... ei-lo desunido. Eu o vejo torcer a
ponta de sua gravata. Deixa um instante de sentir. Bate em retirada. Procura um
ponto de apoio. Respira profundamente. Creio que vai se recuperar, porque
conhece seu ofício. Você me diz que a perturbação em que o colocaram esses
fúteis incidentes prova que ele não sentia nada. Eu acredito que quanto mais um
ator é sensível, mais está sujeito a essas vertigens. Mas ele vai voltar a sentir...
porque conhece seu ofício.
Suponhamos que não tenha deixado de sentir. Ele
atinge sua plenitude. Mas essa própria plenitude, ele precisa medi-la. Ele
possui uma medida da sinceridade, como possui uma da técnica. Dir-se-á que o
ator não sente nada porque sabe servir-se de sua emoção? Que as lágrimas que
correm e esses soluços são vãos porque só estrangulam por um instante a voz do
intérprete e não alteram quase nada sua dicção? Não seria antes de admirar,
renunciando absolutamente a compreendê-lo, esse admirável instinto, esse dom de
natureza e de razão que, há pouco, colocava o ator desconcertado na rota de sua
sensibilidade e que agora impede sua emoção de descompor o jogo dramático? Um
tal jogo exige uma cabeça "de ferro", como disse Diderot, mas não
"de gelo", como ele escreveu antes. Também são necessários nervos
flexíveis e resistentes, e operações interiores muito rápidas e muito delicadas.
Contestar ao ator a sensibilidade, por causa de
sua presença de espírito, é recusá-la a todo artista que observa as leis de sua
arte e não permite jamais que o tumulto das emoções paralise sua alma. O
artista reina, com um coração tranqüilo, sobre a desordem de seu ateliê e de
seus materiais. Quanto mais a emoção aflui nele e o agita, mais seu cérebro
torna-se lúcido. Essa frieza e esse estremecimento são compatíveis, como na
febre e na embriaguez.
... "abarcar toda a extensão de um grande
papel, dispor nele os claros e escuros, os suaves e os fracos, mostrar-se igual
nas passagens tranqüilas e nas passagens agitadas, ser vário nos detalhes,
harmonioso e uno no conjunto, e formar em si mesmo um sistema elevado de
declamação... É obra de uma cabeça fria, de um profundo julgamento, de um gosto
delicado, de um estudo penoso, de uma longa experiência e de uma tenacidade de
memória pouco comum." Diderot tem razão: "tudo foi medido, combinado,
apreendido, ordenado" na cabeça do ator. Mas se a sua representação não
for mais que a expressão de sua maestria e como que a exposição de um excelente
método, ou bem ele descansa na rotina ou bem dissipa-se nos jogos da
virtuosidade. O absurdo do "paradoxo" é opor os procedimentos do
ofício à liberdade do sentimento e negar, no artista, sua coexistência e
simultaniedade.
Para o ator, doar-se é tudo. E para doar-se, é
preciso antes possuir-se. Nosso ofício, com a disciplina que supõe, com os
reflexos que fixou e comanda, é a própria trama de nossa arte, com a liberdade
que exige e as iluminações que encontra. A expressão emotiva surge da expressão
justa. A técnica não só não exclui a sensibilidade, mas a autoriza e liberta. É
seu suporte e sua salvaguarda. É graças ao ofício que podemos abandonar-nos,
pois é graças a ele que saberemos reencontrar-nos. O estudo e observância dos
princípios, um mecanismo infalível, uma memória segura, uma dicção obediente, a
respiração regular e os nervos relaxados, a liberdade da cabeça e do estômago
proporcionam-nos uma segurança que nos inspira a audácia. A constância nas
entonações, nas posições e nos movimentos preserva o frescor, a clareza, a diversidade,
a invenção, a igualdade, a renovação. Permite-nos improvisar.
Não é monstruoso que esse ator, em uma ficção, em
um sonho de paixão, possa forçar sua alma a sofrer com o seu próprio pensamento
a ponto de empalidecer-lhe a face; lágrimas em seus olhos, o aspecto
conturbado, a voz entrecortada, e todo os seus gestos adaptando-se em formas à
concepção de seu espírito? E tudo isso por nada! Por Hécuba? Quem é Hécuba para
ele ou ele para Hécuba, para que a chore?
Hamlet, ato II, cena II.
Shakespeare descreve como ator a tentativa do
homem que agita-se ao fazer viver uma personagem inventada... Interpretar é
antes de tudo insinuar-se no conhecimento da coisa a representar. É formar um
conceito. É em seguida ter o poder de fazer entrar à força sua própria alma
nesse conceito: force his soul... to his own conceit. A inteligência, iluminada
pela experiência e pelo raciocínio, constrói idéias coerentes e variadas. A
sensibilidade as anima e aquece. No interior e nos limites de uma concepção, a
alma trabalha-se, e desse trabalho decorre a operação misteriosa, precária,
submetida a toda espécie de circunstâncias e de particularidades, que vai
revestir com uma exatidão cada vez maior a idéia - o que Diderot denomina: um
fantasma - de formas necessárias, de signos tangíveis nos quais o espectador
reconhecerá a natureza daquilo que se passa dentro do ator suiting with forms
to his conceit... À medida que os signos afirmam-se, em precisão, em acento, em
profundidade, à medida que tomam posse do corpo e de seus hábitos, eles
estimulam por seu turno os sentimentos interiores que com uma realidade cada
vez maior instalam-se na alma do ator, preenchem-na, suplantam-na. É nesse grau
do trabalho que germina, amadurece e desenvolve-se uma sinceridade, uma
espontaneidade conquistada, adquirida, da qual se pode dizer que age como uma
segunda natureza, que inspira por seu lado as reações físicas e dá-lhes a
autoridade, a eloqüência, o natural e a liberdade.